O jovem branco, loiro e de olhos claros tinha mais do que um perfil físico diferenciado da maioria dos rapazes da comunidade onde morava. O rapaz de 18 anos apresentava um perfi l social também destoante entres os adolescentes do Bom Jardim. Desde que veio ao mundo, em 1997, vivia em condições satisfatórias para a realidade daquele bairro da periferia de Fortaleza, onde sempre viveu.
Fruto de uma relação sólida de dez anos, embora pai e mãe nunca tivessem morado juntos, o menino nasceu de uma gravidez planejada. O pai, professor de artes marciais, foi campeão nacional de karatê várias vezes e se tornou autor de livros. A mãe, também professora de karatê e campeã cearense de fisiculturismo, virou microempresária no ramo de confecção de roupas e proprietária de loja de produtos para festa de aniversário.
O garoto foi amamentado até quase quatro anos. Primeiro neto da família, esteve sempre cercado pelos tios, a avó e a bisavó. Filho de esportistas, não quis seguir a trajetória dos pais. “Ele nunca gostou de lutar. Dizia que não queria ser agressivo como eles. O único esporte que fazia era futebol. Era um jovem muito tranquilo e achava os pais um tanto explosivos, atrelando essa característica à prática de artes maciais”, descreve a pesquisadora do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, Mara Carneiro, a
partir da entrevista com a mãe.
O rapaz gostava de alugar campos society para jogar com os amigos, mas foi durante uma partida de futebol que conheceu um traficante de drogas com quem começou um desentendimento que levou ao desfecho trágico. Dias depois de ameaças veladas, olhares de intimidação, o jovem foi assassinado quando saía da casa da bisavó em direção à própria residência. No caminho, vinha uma motocicleta, e na garupa, o agressor.
A mãe ouviu de casa o barulho dos tiros naquele 20 de junho de 2015, mas todos os dias ela escutava disparos de arma de fogo na comunidade ou alguma narrativa de homicídio. No bairro que tem um elevado índice de assassinatos, a violência se tornou cotidiana, banal. “Mas sua irmã chegou em casa aos prantos”. A mulher levou o fi lho ao hospital, embora já não houvesse mais o que fazer.
Uma vida de oportunidades interrompida precocemente. O rapaz morava em uma “casa grande e bonita, com portas de madeira trabalhadas, cerâmica no piso e portões de alumínio”, como descreve a pesquisadora do comitê. Estudou a vida inteira em escola privada, durante muito tempo em um dos colégios mais caros de Fortaleza. “Se ele tinha um defeito, era não gostar de estudar”, aponta a mãe. Por causa da indisciplina, o adolescente teve de procurar outra escola, matriculando-se em um colégio particular do próprio bairro onde morava, mas abandonou os estudos no primeiro ano do Ensino Médio.
Quando foi morto, o rapaz já estava há quase um ano fora da escola. “Ele dizia que queria trabalhar. Havia tirado a carteira de motorista e resolvia vários problemas da família com
o carro. Também trabalhava como pintor profissional e com aplicação de textura em parede; apesar de eventual, conseguia tirar um bom dinheiro dessa atividade”, descreve a pesquisadora, com base no relato da mãe.
Era um jovem que se diferenciava na comunidade, entre os meninos da mesma faixa etária, pela facilidade de acesso ao consumo. “Ela dava tudo para ele, gostava de vê-lo bem bonito, com roupas boas, com dinheiro no bolso para sair com amigos para bares caros, Beira Mar, shoppings… Ela dizia: Ele era um bom filho, merecia tudo de bom e eu tinha prazer em dar tudo a ele”, acrescenta Mara Carneiro.
O rapaz chegou a cumprir medida socioeducativa sem ter cometido ato infracional, segundo a mãe, mas por assumir uma responsabilidade que era do tio: porte ilegal de arma. “Ela relata que tanto o juiz como a assistente social que o acompanhava na medida socioeducativa diziam que ele não tinha perfil para estar ali e perguntavam por que ele assumia esse ato infracional. O rapaz foi liberado no primeiro relatório, pois não apresentava dificuldade para o cumprimento da medida. Ele insistia que tinha cometido o ato, mas ninguém acreditava”, descreve a pesquisadora.
* Esta história de vida foi escrita pelo jornalista Raimundo Madeira, no relatório Cada Vida Importa, a partir do diário de campo produzido pela assistente social Mara Carneiro, pesquisadora do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência.