O reconhecimento da urgência pelo compromisso e responsabilização do estado foi a tônica do debate de lançamento da pesquisa “Meninas no Ceará: a trajetória de vida e de vulnerabilidades das adolescentes vítimas de homicídio”, do Comitê de Prevenção e Combate à Violência, da Assembleia Legislativa do Ceará. Foi lembrado, principalmente ao poder público, o compromisso de se implementarem políticas de proteção e prevenção de violências, para além das já recomendadas e referenciadas pelo Comitê, a nível local e nacional.

Lançado no dia 25 de setembro, o documento reúne evidências e novas recomendações de ações e políticas voltadas para meninas adolescentes, público analisado sob a ótica de gênero, raça e classe. O coro pela proteção da vida de meninas, no Ceará e no Brasil, foi levantado em uníssono pelas convidadas e convidados para mesa de discussão do evento, entre elas Jurema Werneck, da Anistia Internacional Brasil; Deborah Duprat, jurista e Subprocuradora-Geral da República aposentada; Mara Carneiro, representante do Fórum de Organizações Não Governamentais em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA); Carla da Escóssia, representante da Vice-Governadoria do Ceará pelo programa Pacto por um Ceará Pacífico; Rose Marques, do Fórum Cearense de Mulheres; Helena Oliveira, chefe do UNICEF em Salvador, além de outros coordenadores do UNICEF, como Rosana Vega, chefe da Área de Proteção de Crianças e Adolescentes, e Dennis Larsen, chefe do UNICEF no Semiárido. O encontro aconteceu virtualmente, transmitido ao vivo pelos canais da Assembleia Ceará e salvo no YouTube (no link: https://youtu.be/cPzsLR15Xws).

A pesquisa e seus percursos

Apresentado por Daniele Negreiros, assessora técnica do Comitê e coordenadora geral da pesquisa, o relatório segue o exemplo do anterior, Cada Vida Importa, também elaborado pelo Comitê, que tratou de homicídios de adolescentes em 2016, em suas trajetórias de vida contadas pelas famílias. Entretanto, traz também a narrativa de meninas sobreviventes, em condições similares às que foram vitimadas, e o recorte de gênero, que se difere da pesquisa anterior e causa ainda mais afetação, como explica Daniele: “me perguntaram o que há de novo nessa pesquisa – e foram homens que me fizeram esse questionamento –, já mostrando uma naturalização da violência contra nós, mulheres, e essas meninas. Mas o fenômeno de termos, por dois anos consecutivos (2017 e 2018) e este ano no estado, mortes de adolescentes meninas em tamanha quantidade, já deveria ser o suficiente para nos surpreender, mas a gente ainda vê um cenário de muito descrédito e desqualificação”.

Daniele Negreiros e Renato Roseno.

A dor, que atravessa famílias nas periferias e municípios do Ceará pela perda trágica de suas meninas, foi um elemento bastante lembrado pela mesa, em que Daniele enfatiza seu agradecimento a esses familiares, principalmente às mulheres, por abrirem suas casas e compartilharem os sentimentos de luto e informações detalhadas com as pesquisadoras de campo, que em grande parte dos casos, foram as primeiras a chegar e escutar essas famílias após o homicídio. Sobre a competência e sensibilidade dessa etapa da pesquisa, o deputado Renato Roseno, presidente do Comitê e mediador da mesa, destaca a importância das quatro consultoras, professoras universitárias, e a dedicação das seis pesquisadoras, todas mulheres. “Para nós era muito importante que essa pesquisa com meninas fosse feita, coordenada e realizada exclusivamente por mulheres, para enfatizar, em todo o processo, as questões de gênero, que pra nós são questões estruturantes”, explica.

Assim como Renato, a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Veriana Colaço, uma das consultoras convidadas, reitera a dificuldade do campo vivenciada pelas pesquisadoras e as parabeniza pela coragem de encarar a violência dos territórios e a dor compartilhada. Camila Holanda, professora da Universidade Estadual do Ceará e também consultora da pesquisa, fala da importância da comoção que o estudo provoca: “para mim, pesquisas que não produzem nenhum tipo de emoção, não tem muito impacto, e essa é um caleidoscópio de emoções”.  A professora Ângela Pinheiro, da UFC, também consultora, alerta sobre a urgência de implementação das recomendações a partir dos dados levantados, assim como Camila, que complementa, “nosso maior desejo é que, de fato, esses dados que foram coletados com tanto cuidado, tanta sensibilidade e tanta ética, alcancem realmente políticas públicas eficazes, que marquem o reconhecimento de que essas vidas importam.”

Das consultoras que marcaram presença no lançamento, a única ausente foi a professora Rejane Vasconcelos, que não pode participar do momento. Também registraram presença no encontro as pesquisadoras Gabriela Colares, Ingrid Lorena Leite, Josileine Araújo, Lara Denise Silva, Roberta de Castro e Ticiana Santiago.

“O que a gente vai fazer com isso e deve fazer agora?”

Essa foi a provocação que a secretária executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, lançou logo no início de sua fala. Ela aponta a responsabilidade de toda a sociedade para as evidências destacadas no relatório, mas principalmente chama atenção o estado, o poder público. “É preciso quebrar o longo pacto de desacato e de negligência. Os dados mostram que antes da morte, a vida sofreu muitas perdas e muitas mortes. E por trás dessas mortes, estão a negligência, omissão e incompetência do estado de devolver a elas o que lhes era de direito”.

Ela defende também a quebra de outros pactos, estruturalmente existentes no Brasil e que vulnerabilizam a vida de meninas adolescentes negras e periféricas. Refere-se ao pacto do silêncio, que cala as denúncias das mortes anunciadas ao produzirem o silenciamento das meninas, suas famílias e comunidades. O outro pacto é do isolamento, que é o esquecimento e a invisibilidade sofrida pelas meninas vítimas e por suas famílias, que permanecem isoladas após o homicídio. O pacto do racismo patriarcal heteronormativo é outro que precisa ser quebrado. “A pesquisa aponta que elas eram as mais escuras, não as mais claras, eram pardas. Essa constatação fala que tem um racismo e que ele age diferente entre meninos e meninas e que ele provocou a morte dessas meninas. Age diferente se elas são cis, trans, lésbicas e heterossexuais. É preciso romper esse pacto, enfrentar o racismo. Sem isso as meninas sobreviventes não têm esperança, nem nós teremos esperança”, reflete.

As sobreviventes, para Jurema, precisam de cuidado, assim como sua família e até os órfãos das meninas vítimas, no contexto da estigmatização da pobreza e no direito à Justiça e reparação. “É preciso ação estatal, de todos os tipos. A pobreza não é uma coincidência, ela é fruto das discriminações, das exclusões e das negligências, todas elas informadas pelo racismo patriarcal heteronormativo. É preciso resolver isso agora, não depois, agora!”, enfatiza.

Produção da pobreza e a posse dos corpos femininos

Também apontada pela jurista Deborah Duprat, a produção da pobreza é uma das raízes da questão e uma escolha. “A periferia é uma construção, não é uma fatalidade. O local da pobreza é construído exatamente pela não chegada dos equipamentos de lazer, de saúde, de cultura. É muito importante deixar isso claro. não há equipamentos por uma deliberação do poder público, são escolhas. Essa é uma escolha para deixar a periferia longe do centro”, afirma.

Deborah relaciona o acúmulo de violências construído ao longo da história do Brasil com a violência da mulher negra e periférica. “A história nacional nesse país se constrói sobre episódios de muita violência, e há uma violência estrutural que surge exatamente do encontro do patriarcado com o racismo. A chegada do homem branco ocupa não só territórios, mas ocupa os corpos das mulheres como se propriedade fossem. Como diz Segato, a noção de posse de propriedade dos corpos das mulheres permanece como mito fundador associado às mulheres negras e à periferia.”

A jurista e referência nacional na defesa dos direitos humanos dentro do Ministério Público Federal, saúda a metodologia usada na pesquisa, com a escuta das famílias e meninas em situação similar. “Era uma situação que a resposta fácil seria o fato de as meninas estarem num território do crime, da violência. No entanto, a pesquisa traz os acúmulos de violência e a dificuldades de contar com os aparatos do estado”. E finaliza, “a nível nacional, eu acredito que esse estudo vai ajudar muito a colocar o foco e cobrar dos poderes locais, estaduais e municipais, cobrar providências. As alianças que se formam localmente são as únicas possíveis de vencerem o quadro registrado nesse relatório”.

Incidência nas políticas e alianças locais para prevenção de homicídios

Outro ponto em comum na discussão do relatório, foi o reforço da importância das políticas e ações municipais e estaduais e a cobrança pela sua efetivação e execução orçamentária. Helena Oliveira, chefe do UNICEF em Salvador, traz o estudo do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), coordenado pelo UNICEF em uma parceria com o Ministério dos Direitos Humanos do Brasil, o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise da Violência, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), como uma ferramenta para essa incidência na política pública.

“Na perspectiva histórica da atual pesquisa, chegamos a ela porque o IHA jogou luz sobre a precocidade e racialização dos homicídios no Brasil, e o UNICEF contribuiu para que a pauta focalizasse as políticas de município. Com essa incidência, foi criado o Guia metodológico do IHA, muito utilizado pelos gestores municipais, na criação de seus programas de redução da violência letal, tendo o Ceará como o primeiro estado a criar o comitê de prevenção de homicídios, por exemplo”, afirma Helena. Nessa perspectiva, Dennis Larsen enfatiza a importância de a pesquisa chegar a nível nacional e Rosana Vega amplia o alcance das propostas do estudo. “É preciso que a prevenção chegue logo no início, na primeira infância. Na linha de reflexão da interseccionalidade, é repensar e redimensionar o assunto, dando a devida importância de assegurar os orçamentos para que os serviços sejam realizados”, aponta.

Sobre a execução orçamentária de políticas e programas que protejam a vida das meninas e previnam as mortes de adolescentes, Mara Carneiro, do Fórum DCA e coordenadora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente no Ceará (CEDECA Ceará), alerta para a baixa execução e a drástica redução orçamentária na implementação da política de assistência social no Ceará, além do considerável aumento em gastos com a segurança pública no estado, cujos dados são apontados em estudos recentes do CEDECA. “Para a gente, isso não é uma coincidência. Temos assistido a um processo de desresponsabilização do estado, de fragmentação e fragilização das políticas públicas. Com isso, queremos ressaltar a responsabilidade do estado com essas mortes.” E continua, “porque o estado também não é responsável apenas quando seu braço armado executa e tira a vida de alguém, ele também é responsável na medida em que negligencia e se omite, quando não tem nenhuma afetação por essa parcela da população que deveria ser a nossa prioridade absoluta.”

Representando a Vice-Governadoria do Ceará através do programa Pacto por um Ceará Pacífico, que é membro do Grupo Gestor do Comitê, junto ao Fórum DCA e UNICEF, Carla da Escóssia destaca a importância das recomendações do Comitê, que orientam muitas das ações do programa. “Aprovamos na Assembleia o projeto de investimento para o Programa de redução e prevenção da violência (PreVio), cujas ações são voltadas principalmente a mulheres e meninas”, afirma Carla.

O Fórum Cearense de Mulheres, representado por Rose Marques na mesa, acompanhou a pesquisa desde o início e também se dedica ao monitoramento da violência e de feminicídios contra mulheres e meninas no estado. Rose enfatizou que as evidências apontadas pelo relatório confirmaram as suspeitas, e complementa com algumas questões acerca da eficácia das políticas estaduais e municipais. “Que equipamentos de fato oferecem proteção às meninas ameaçadas? Elas estão sendo atendidas de forma adequada nos equipamentos que lutamos há décadas para existir? Elas são consideradas vítimas de violência de gênero pelo estado? Esse fator é reconhecido pelo estado?”

Ela reforça a responsabilização do estado, inclusive pelo posicionamento diante das questões. “Nós reconhecemos por vezes um discurso muito incompatível com essa responsabilização do estado, quando autoridades preferem minimizar ou relegar a questão a um produto resultado das facções e dos grupos armados. Essa narrativa não é só mais fácil, como colocou Jurema, como também retira do estado qualquer possibilidade de responsabilidade”, completa Rose.